Corpo e reconhecimento em Judith Butler

Em 05 de Setembro a rede Inconsciente Real foi presenteada com o webinar de Jacqueline Moraes Teixeira, doutora em Antropologia Social pela USP, cujos temas “Judith Butler”, “sujeito” e “poder” têm sido objeto de estudos e discussões não só da rede, mas também de inúmeros debates contemporâneos. Na aula online a professora tratou inicialmente da trajetória da renomada filósofa mundialmente conhecida por seu trabalho e estudos sobre o conceito de gênero e tentou situá-la em relação aos autores com os quais dialoga.

Butler, que teve sua história marcada, de um lado, pela guerra e pelo refúgio de sua família de ascendência judaica, e, de outro, por uma personalidade que não se encaixava nos padrões “femininos” desde sua infância, tendo sido por isso prematuramente “enviada” a receber aulas de filosofia com o rabino da comunidade como uma forma de punição, acabou por engajar-se desde cedo na filosofia. Trabalhando inicialmente com o conceito “problema”, a pesquisa culminou em uma de suas obras mais conhecidas “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade” de 1989 e que já está em sua 17ª edição. Como descreve em seu prefácio:

[…] a lei dominante ameaçava com problemas, ameaçava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluí que problemas são inevitáveis e nossa incumbência é descobrir a melhor maneira de criá-los, a melhor maneira de tê-los. Com o passar do tempo, outras ambiguidades alcançaram o cenário crítico. Observei que os problemas algumas vezes exprimiam, de maneira eufemística, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do feminino. (Butler, 1990, p. 7)

Esse trecho reflete as ambiguidades que recobrem o tema do “poder” nas relações e, principalmente, nos discursos, já que aquilo que amiúde se considera pretensamente um problema, desvio etc. encobre comumente categorias “fundacionais” ou “naturais”, elementos característicos de discursos de poder.

A partir daí, e para explicar essas categorias como efeitos de uma formação específica de poder, a filósofa constrói o pensamento crítico na tradição foucaultiana da genealogia, com a qual investiga as apostas políticas de instituições definidoras como, por exemplo, o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória, bem como práticas e discursos que moldam corpos e identidades (cf.: Butler, 1990, p.10).

Butler vai transitar principalmente no sistema filosófico hegeliano, sobretudo com a teoria do reconhecimento na ‘Fenomenologia do Espírito’ (1807), a noção de desejo, além do pós-estruturalismo, dialogando com autores como o próprio Foucault, Jacques Derrida e Julia Kristeva. A autora procura sempre tomar distância da ideia de que há elementos da vida humana que são pré-discursivos. Para ela, a subjetividade baseia-se em uma noção de materialidade, sendo o sujeito algo sensível, corpóreo, visual, ou seja, o sentido é sempre visível no corpo e a subjetividade é uma exterioridade. Como consequência, ela distancia-se de autores para quem o corpo é apenas resultado ou uma representação do que a mente produz, que separam, de maneira geral, corporeidade de mente.

De acordo com a professora Jacqueline, do estruturalismo, Butler herda a noção de que toda relação é uma relação de poder. Logo, produzir um sujeito é sempre produzir uma linguagem de poder. E, ainda no tema das relações, a filósofa vai trabalhar com a cena do reconhecimento de Hegel, que nos oferece a ideia de que um ser humano só pode existir enquanto tal se há um outro que o reconheça a partir de interpelações como: “quem é você?” e “quem sou eu?”.

Todas essas premissas são fundamentais para a construção da ideia de que todo corpo precisa se constituir como uma existência palpável, o que se dá pela performatividade, pela forma como esse corpo aparece para outros corpos. Neste ensejo, Butler se apropriará do conceito de citacionalidade do filósofo John Langshaw Austin (1911-1960), para explicar que um gênero, por exemplo, para ser reconhecido como tal, necessita da referência de outros corpos do mesmo gênero – o que ela vai chamar de “alianças”. Advém deste ponto a ideia de que há identidades factíveis que podem pertencer socialmente. Por essa via, entende-se também a importância de movimentos identitários, no sentido de que quanto mais um sujeito se coletiviza, mais ele pode ter sua singularidade reconhecida e respeitada, inclusive em termos de políticas públicas. Sem essas alianças, os corpos podem simplesmente não ser reconhecidos por outros, e podem até ter sua humanidade prejudicada e não reconhecida como tal. Aqui se insere a ideia de Butler de que há corpos abjetos, corpos que “servem como exterior constitutivo daquilo que é delimitado como humano, formam o campo do abjeto, do inumano, daquilo que fora excluído, negado, e que tende à morte.” (Moreira, 2019, p. 32).

         Uma das propostas da filósofa para que os diferentes corpos possam coabitar, conviver, como expôs a professora Jacqueline, seria transformarmos radicalmente a cena do reconhecimento, permitindo-nos criar alianças com quem não reconhecemos de saída – com os corpos que julgamos diferentes dos nossos. Pois, desse modo, um sujeito reconhecido é um sujeito que recebe proteção social, do Estado; é um corpo que pode coabitar sem o risco iminente de ter seu corpo hostilizado e, no limite, passível de extermínio.  Nas palavras da filósofa:

[…] quando corpos se unem como o fazem para expressar sua indignação e para representar sua existência plural no espaço público, eles também estão fazendo exigências mais abrangentes: estão reivindicando reconhecimento e valorização, estão exercitando o direito de aparecer, de exercitar a liberdade e estão reivindicando uma vida que possa ser vivida. (Butler, 2018, p.37).

         Por último, Jacqueline conclui que, para Butler, no que tange especificamente a psicanálise,  área de apropriação da autora tanto para crítica, quanto para auxiliar em sua leitura para pensar gênero e sexualidade, um de seus compromissos deveria ser auxiliar justamente no reconhecimento das mais diversas performatividades, identidades, corpos, produzindo assim meios possíveis, linguagens de reconhecimento, para que esses diferentes corpos possam viver uma vida humana também possível de ser vivida. Em suma:

[…] o corpo, apesar de suas fronteiras claras, ou talvez precisamente em virtude dessas fronteiras, é definido pelas relações que fazem sua vida e ação possível. (Butler, 2018, p. 165)

 

Allana Carolina Cardoso Mota

Psicanalista e psicóloga lacaniana, especialista em dependência química pelo Instituto de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e membro da rede Inconsciente Real e dos grupos de estudos e pesquisas “prática clínica” e “feminismo e psicanálise”.

 

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 2018.

 ____. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; Tradução de Renato aguiar. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 2019.

MOREIRA, Maíra Marcondes. O feminismo é feminino? A inexistência da mulher e a subversão da identidade. São Paulo: Annablume, 2019.

Assista abaixo o webinar “Perfomatividade de Gênero e Sujeito de Poder em Judith Butler” com Jacqueline Moraes Teixeira:

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