ABC do Inconsciente – Insônia

ABC do Inconsciente – Insônia

Sendo o ser humano uma criatura de linguagem, imersa num universo simbólico socialmente compartilhado, somos capazes de nos afetar e produzir transtornos que subvertem os instintos mais básicos: isso acontece com o sono, com a alimentação, com a sexualidade e com a morte, por exemplo.  O imperativo biológico do dormir é capaz de se desnaturalizar, transformando e tornando nossa relação com o sono algo muito mais complexo. 

O problema da insônia grave e crônica, por exemplo, está muito presente em nossa sociedade hoje (Matéria da BBC sobre insônia e Zolpidem) e tal fato deve servir para pensar não só o indivíduo, mas também a sociedade que produz indivíduos cada vez mais insones – ou seja, nem tudo é neurose – importante dizer isso. 

Muitas coisas são “de tirar o sono”, mas nem sempre elas são fruto do nosso adoecimento neurótico. Um mundo capitalista adoecido também é capaz de tirar o nosso sono, pois produz preocupações e privações às vezes tão básicas que é quase impossível ter alguma tranquilidade para dormir. Como dormir bem se estou passando fome? Essa é uma discussão importante e que requer intervenções mais complexas. Mas aqui falaremos do sono e da insônia neurótica; essa está mais a alcance da psicologia.

A insônia é uma perturbação comum que afeta muitas pessoas em diferentes graus. Nem sempre ela se torna um problema permanente, mas sua presença é, sempre, sinal de algum mal-estar interno de causas desconhecidas ou conhecidas. Quando a insônia tem relação com nossas profundezas subjetivas, podemos dizer que ela está a favor do desvelamento de algo muito próprio de nós mesmos, interno, bruto, que demanda elaboração psíquica. 

É a partir desse sintoma que muitas pessoas buscam ajuda psicológica e/ou psiquiátrica, tamanho o sofrimento que ele causa.

Para falar de insônia, temos que falar também do sono e do sonhar.

O sono é um fenômeno cuja origem é intra-uterina. Depois, já fora do útero, precisamos – entre outras coisas – de um Outro que nos acalente e nos conduza a um sono tranquilo. Esse sono gostoso é uma das primeiras experiências que temos enquanto humanos. 

Para além da necessidade fisiológica, que é um fato, o sono é uma experiência erótica de entrega a um Outro que deve nos acalentar (enquanto bebês) e transmitir segurança para que possamos repousar. O sono infantil depende, portanto, da pacificação do mundo real promovida por um Outro.

(Importante dizer que, se você tem um bebê e ele está com problemas no sono, isso não significa que seja sua culpa! Há muitas outras coisas que podem estar por trás desse sono ruim e isso deverá ser investigado com a ajuda de profissionais).

Depois de crescidos, o sono passa a ser uma experiência impregnada de significados emocionais e afetivos profundos os mais singulares, mas ele passa a ser também um refúgio através do qual o Ego se rende, onde temos uma suspensão temporária do controle do Eu e seus interesses, abrindo portas para um descanso revitalizante e repleto de sonhos. Para o psicanalista Sigmund Freud, o sonho seria o “guardião do sono”, mantendo nossa mente em algum tipo de trabalho psíquico, mas com mecanismos de cuidado e disfarce para que os conteúdos não se tornem demasiado intragáveis e importunem o repouso revigorante (o que nem sempre acontece, já que temos pesadelos também).

Insones, com ou sem sonhos, é preciso buscar ajuda. Se você ainda sonha apesar do sono ruim, considere que os sonhos podem ser um bom ponto de partida para começar a falar sobre suas questões, uma vez que ele nos envolve em cenas cheias de desejos e representações que clamam por expressão e reconhecimento. 

Na escuridão silenciosa da noite, como se desligar e se entregar para o mundo dos sonhos? Como se abandonar ao desconhecido? Sem dúvida precisamos de um mínimo de segurança física, material e emocional para renunciar ao controle consciente e nos entregar a uma Outra dimensão da existência. Considere falar sobre sua insônia, seu sono ou seus sonhos com um profissional que não reduza sua importância  a uma mera imposição biológica: o sono é muito mais do que isso.

 

Referências:

Mário Eduardo Costa Pereira. “A erótica do sono: ensaios psicanalíticos sobre insônia e o gozo de dormir”.

 

Patrícia Andrade

Psicanalista e psicóloga, aprimorada em Saúde Mental pelo Instituto A Casa e membro da rede Inconsciente Real

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