Uma possível direção de tratamento na psicose.

De um corpo marginal às margens de um corpo:
uma possível direção de tratamento na psicose.
[1]

 

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ela delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.”
MANOEL DE BARROS

 

É preciso tratar das relações do sujeito psicótico com a linguagem, falada e escrita, com a imagem, com o corpo, com o Outro e com o objeto.

A aposta analítica neste caso singular foi a de sustentar a existência de um sujeito de fala e de linguagem, sujeito de desejo, mesmo que assujeitado a ruídos estrondosos advindos do campo do Outro, ruídos ensurdecedores diante de funções maternas falhas e claudicantes, algumas talvez esquizofrênicas, outras contempladas por alguns traços de perversidade.

O que faz corpo na psicose? É possível falar em “construção” de um corpo-imagem, de um eu-imagem, diante da ausência de bordas corporais onde os orifícios pulsionais aparecem intensamente colonizados pelo Outro? Como comprovar logicamente essa espécie de “bordadura imaginária?”

Houve alguém ali, um par analista-supervisor, evoco o delicado trabalho que Ana Paula Gianesi fez ao me acompanhar nesta trajetória durante o processo de atendimento, em ato, apoiando-me na escuta e acolhimento de um aglomerado indiscernível de sons obscuros e nebulosos, não decifráveis, não intercambiáveis, apostando na premissa de tratar-se de uma fala imersa em um discurso, uma vez que não há voz sem o Outro. Esse encontro me fez entender que “o corpo é urgente na Psicose!”

A escrita e a tentativa de formalização deste caso foram possíveis com a entrada de uma segunda supervisora, Tatiana Assadi, que com seu estilo primoroso de escuta e interlocução, mesmo que à posteriori, me incentivou a escrever, transmitindo o fato de que a construção de um caso clínico nos coloca necessariamente frente à formalização que desta escrita se decanta. Deixo-lhes aqui, à Tati e à Ana, um singelo, porém genuíno sentimento de gratidão!      

Esse texto não tem a pretensão de discutir categorias nosográficas no campo da diagnóstica das psicoses. Tentarei ilustrar, a partir de alguns recortes, uma direção de tratamento norteada pela construção de um corpo imaginário e concomitante reestruturação da posição psíquica do sujeito frente a sua realidade.

“Diremos, portanto, que é sem corpo aquele que nada faz com seu corpo, ou seja, que não o investe, nas empreitadas das sublimações narcisistas. De forma inversa, aquele que o investe, investirá aí, mais que a imagem, o real de seu sintoma de gozo como ‘acontecimento de corpo’, que nada deve à verdade da palavra e que mostra, às vezes, até mesmo sua “antinomia com qualquer verossimilhança”, para esse ser “falasser”, feito de palavras, mas que tem seu corpo”. (SOLER, 2018 – p.109)

Encaminhado por esta Rede, recebo uma criança que talvez escute a cor dos passarinhos, talvez. Nenhum fenômeno elementar próprio ao campo das psicoses, nenhum delírio ou alucinação, surgiu para endossar esse diagnóstico estrutural. Ele será sustentado, mesmo assim, a partir de sua posição frente ao Outro, a partir de uma espécie de “corpo solto”, despedaçado, diante do esfacelamento do registro do imaginário ou até mesmo diante de sua ausência total, onde não há representação do corpo próprio e o significante não está submetido à Lei simbólica. O desafio analítico será a de construir alguma organização imaginária possível, em relação ao Outro e ao objeto.      

Não há desinvestimentos maciços deste sujeito em relação à realidade externa, não há ausência de desejo em se fazer comunicar. Desde o início verifiquei um endereçamento espontâneo de significantes em direção a mim, havia desejo em pertencer a laços sociais que sua vida lhe oferecia: futebol, escola especial para surdos-mudos, família, alguns amigos, uma prima mais velha que participava de seus cuidados e com a qual nutria uma afetuosa relação.   

Houve consideráveis falhas na função do Outro, neste caso singular refiro-me à função do Outro materno coincidindo com a presença real da mãe. Ela traz as marcas de um diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia revelando ter sido submetida a duas longas internações por ter estado “confusa e atrapalhada”. Em algumas poucas entrevistas recolho pensamentos e relatos de experiências cotidianas intensamente desorganizados, verifico um contato fragmentado e desestruturado mediante à realidade. Sua primeira grande crise ocorreu no Nordeste e fez com que seu marido a “despachasse” com o filho pequeno à São Paulo, situação de rejeição que lhe acarretou a necessidade de se submeter aos cuidados de uma mãe um tanto exigente, queixosa e insatisfeita diante do frágil estado de saúde psíquica dessa filha e de seu neto.             

Matheus chega insosso, debilitado, sem bossa, sem charme, de um brilho opaco, um tanto trôpego, ensurdecido, ruidoso, indecifrável, porém extremamente falante. Com alguns poucos antecedentes históricos, aqueles possíveis de serem colhidos através de entrevistas com a mãe e a avó, as cuidadoras mais próximas deste jovem de 09 anos, poderíamos pensar, num tom superegoico carregado de certo juízo moral inerente a essa função, tratar-se de um menino largado, um tanto abandonado, um menino desleixado! Nem desleixado, nem disléxico, nem epilético, talvez um pouco eclético, diante de parcas e raras possibilidades de ser considerado como sujeito de fala, sujeito de linguagem, sujeito de desejo.

Um bife com olhos, um pedaço de carne sem ouvidos, mas com múltiplas bocas confusas e atropeladas? Uma marionete humana como aquelas de Sasori, que inspirou Naruto? As marionetes humanas eram feitas a partir da extração dos órgãos [s1] internos do corpo do indivíduo, preservando a estrutura externa para manter o fluxo e as naturezas de seus chakras, substituindo apenas os músculos por madeira. Na animação, as criações de aparência humanóide exerciam a função de armas à longa distância, eram usadas ofensivamente, defensivamente e, algumas vezes, de modo suplementar. À serviço do que estaria o ensurdecimento de Matheus?       

Acolho o corpúsculo mal ajambrado deste sujeito, seu corpo marginal, com meu olhar e neste breve segundo somos introduzidos na vida um do outro: “Esse é o meu bichinho”, diz num tom um tanto abafado a sua avó! “Bichinho?”, retruco-lhe! “Sim, é assim que a gente fala lá no Nordeste, lá na terra de onde vim”! “Ah, sim! Você está se referindo a seu neto! Conte-me, por que estão aqui?”.

Há lacunas, espaços em branco, perguntas sem respostas nos relatos colhidos durante as entrevistas iniciais com a família. Da mãe vinham histórias truncadas, confusas, fragmentos delirantes, atemporais, desconexos. Da avó surgiam queixas pela falta de capacidade do neto em se organizar, preocupações antecipatórias que tentavam justificar a colonização de todos os seus orifícios corporais. “Acordo o menino de hora em hora para que ele não faça xixi na cama.” “Ele precisa comer tudo o que está no prato”. “Antecipo a medicação para não dar convulsão!”                             

Matheus é diagnosticado desde a mais tenra idade com uma espécie de retardo mental e um tipo de surdez genética e traz em seu corpo as insígnias que o atravessaram a partir da peregrinação por tantos e tão variados médicos que pudessem dizer algo a mais sobre seu sofrimento. Uma busca sem fim. Seus familiares queriam que fosse “mais normal”, “mais educado”. Nas raras ocasiões em que a mãe tenta aproximá-lo do pai, recolhe incontáveis críticas por não ter ensinado o menino a “falar direito”. Nunca tive a possibilidade de auferir mais precisamente quais tipos de diagnósticos neurológicos e psiquiátricos deixaram marcas nesse sujeito.

“Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que o nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentido… O som é produto de uma sequência rapidíssima (e geralmente imperceptível) de impulsões e repousos, de impulsos (que se representam pela ascensão da onda) e de quedas cíclicas desses impulsos, seguidas de sua reiteração. A onda sonora, vista como um microcosmo, contém sempre a partida e a contrapartida do movimento, num campo praticamente sincrônico, …, é formada de um sinal que se apresenta e de uma ausência que pontua desde dentro, ou desde sempre, a apresentação do sinal. (o tímpano auditivo registra essa oscilação como uma série de compressões e descompressões). Sem este lapso, o som não pode durar, nem sequer começar. Não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em espasmo. O som é presença e ausência, e está, por menos que isso apareça, permeado de silêncio.” (WISNIK, 1989 – p.17/18)  

Mais além de algo efetivamente disfuncional em seu ouvido, mais além de um tímpano auditivo colapsado, há algo desse par de opostos “presença/ausência”, “impulso/recuo”, “ascensão/queda”, “partida/contrapartida”, “compressão/ descompressão” que não opera simbolicamente e Matheus fica sem recursos de significação para compreender o sentido do que lhe é comunicado. Em contrapartida, apresenta um escasso repertório de vocábulos e não consegue se comunicar verbalmente. Não há pausas, os significantes aparecem comprimidos num amontoado indecifrável de sons desorganizados a partir da ausência de um suporte imaginário e simbólico.

Algo do discurso médico/científico serviu como ponto de apoio para a certeza entre seus familiares de tratar-se de um ‘menino doente’, ‘surdo’, ‘incapaz’, um tanto ‘retardado’ que necessitava de cuidados especiais! Andava especialmente ‘rebelde’ nos últimos tempos, ‘desobediente’, fazendo xixi na cama, ‘agitado’, ‘confuso’, ‘perturbado’. A queixa sintomática inerente ao apelo desta avó denunciava sua demanda para que eu pudesse deixá-lo mais calmo, ou seja, mais obediente e responsável. ‘Ele dá trabalho!’, dizia-me em tom de lamúria.            

Assim como com sua mãe, seu déficit auditivo era quase de noventa por cento, corrigíveis com o uso da prótese auditiva acústica. Diante das dificuldades ao tentar usar o acessório, a avó optou por não infringir ao rapaz o mesmo tipo de sofrimento que observou em sua filha e deixou isso para lá.

Embora tenham conseguido gratuitamente um aparelho por uma das muitas instituições do sistema público de saúde a que frequentemente recorriam em busca de ajuda para Matheus, não incentivaram seu uso, nem tampouco investiram mais seriamente num processo de adaptação. “Mandamos o menino aprender os sinais e deixamos isso pra lá”!  Lá aonde? Indago-lhes. Lá no ‘fundo da gaveta’, ‘quebrado’, ‘esquecido’, ‘empoeirado’ e ‘sem bateria’.  A avó referia-se à língua de libras, a língua materna dos surdos cuja modalidade gestual-visual se exprime através da combinação de sinais e expressões faciais, as chamadas expressões não manuais.

A intervenção foi a insistência no uso deste recurso, pelo menos durante as sessões. “Esse rapaz ouve e pode falar. Estou aqui para escutá-lo! Só irei recebê-lo com o uso do aparelho!”. Posição difícil de sustentar mediante a falta de implicação e percepção da importância do uso deste instrumento pelas suas cuidadoras.

A mãe, ela própria, com muitas dificuldades e bastante resistente ao uso de seu aparelho, falava alto, num tom aflito, descabido, desorganizado. Sempre se antecipava às sessões do filho, chegava quatro, às vezes cinco horas antes do horário agendado, reproduzindo o mesmo modo de acolhimento com que estava habituada nas redes de assistência à saúde pública. Poluía a sala de espera com falas queixosas em relação ao ‘mal comportamento’ do filho e com desculpas mediante a ausência do aparelho de Matheus: “A bateria caiu em algum lugar, talvez no meio do caminho.” “Está sem pilha.” “Não sei, não liga, que estranho, está fazendo um ruído esquisito!” “Está um pouco sujo, pode dar coceira no ouvido!”, …  O manejo era solicitar que voltassem à casa e retornassem à sessão seguinte somente de posse do aparelho, de preferência no horário agendado para não o extenuar com tanta espera.

Aos poucos, num lento e vagaroso processo, tanto a mãe como a avó passaram a perceber que só assim algum tipo de tratamento seria possível. Vinham com o aparelho auditivo, mas insistiam em chegar muito tempo antes da sessão. Chego a lhes mostrar uma praça arborizada próxima ao consultório, aponto-lhes a possibilidade de usufruírem de momentos mais lúdicos e interessantes, advirto-lhes sobre o sofrimento que causava tanta espera. Matheus agitava-se a cada entrada minha para receber os pacientes que lhe antecediam, contávamos juntos com os dedos da mão os números de sessões que haveria antes, até que chegasse a sua vez.     

Ao ter os ouvidos destampados, começa a salivar em abundância. Matheus, mesmo assim, passa a falar algumas palavras compreensíveis sem recorrer à linguagem de sinais. Passa a solicitar com frequência a permissão para usar o aparelho também em momentos de sua vida cotidiana, para além das sessões! Parece estar mais conectado com a realidade ao seu redor, menos disperso, mais presente, mais falante, mais vivo, mais desperto.

Passamos a fazer listas dos significantes passíveis de interlocução social e daqueles compreensíveis somente pelo par analítico. “Favo” significava carro, “asa” era casa … Escrevíamos os que apareciam no decorrer da sessão e Matheus passou a manifestar seu desejo em ter essas listas consigo, arrancava despudoradamente as folhas de um bloco de notas, metia-lhes num dos bolsos da calça e quando já estava satisfeito mediante a coleção de palavras registradas, abria a porta da sala, dizia-me “xau” e encerrava a sessão.

Em alguns momentos recorria aos lápis de cor e giz de cera e reproduzia fielmente, em seu estilo imaginário de “cópia e cola”, desenhos de carros presentes em um livro de colorir que ficava à sua disposição. Demonstrava certa exigência de perfeição na feitura dos traços e às vezes reagia com raiva e frustração diante do resultado obtido. Rasgava a folha e recomeçava do início.

Logo nas primeiras sessões deu-se a holófrase de significantes: “Matheusiona”, onde a última letra de seu nome coincidia com a primeira letra de meu nome. 

“Matheusiona” aparecia com frequência em seus desenhos.  Demarcava a cada vez a separação com uma elipse no nome dele e acrescentava um S maiúsculo ao meu. A separação deste aglomerado ocorreu sessões antes do tratamento ser interrompido pela falta de disponibilidade da mãe em seguir trazendo Matheus ao consultório. Justificou a interrupção dizendo estar sem tempo, levaria seu filho a uma psicóloga do serviço público de saúde mais próximo à sua casa. Essa mãe pareceu não lidar com os limites impostos ao tempo e ao uso da sala de espera, limite sustentado mais severamente a partir da queixa de outros profissionais que compartilhavam esse espaço. “Um furdunço insuportável”, dizia-me um deles!

Seria a holófrase, em seu estado conjuntivo, um sinal do estabelecimento da transferência? Sua disjunção, a prova lógica de que houve a construção de um corpo imaginário? Matheus referia-se até aqui ainda na terceira pessoa do singular, porém, após a separação dos nomes próprios anteriormente condensados e aglutinados, verifica-se a recorrência à primeira pessoa para falar de si: “Eu vou, …”, “Eu sou, …”, “Eu quero, …”, … Sujeito na primeira pessoa + verbo + predicado. Essas pronunciações demonstram os efeitos organizadores do registro do imaginário e a possibilidade de contorno do Eu.  

Não é incomum o surgimento da holófrase na psicose e logo nas primeiras operações subjetivas a dupla de significantes primordiais encontra-se aglutinada/congelada e sem intervalo entre si. É somente a partir deste espaçamento que outros significantes podem advir.

Desde o início, durante os intervalos das sessões, e mesmo após o tratamento ter sido interrompido, era frequente a troca de mensagens por WhatsApp entre mim e Matheus. No início eram fragmentos de textos de mensagens enviadas pela mãe a outras pessoas que chegavam a mim pelo atalho “control c – control v”, numa espécie ‘cópia e cola’ frenética. Respondia-lhe sempre com a mesma pergunta: “Matheus, você está bem?” Recebia uma espécie de ecolalia virtual: “Matheus, você está bem?”, intercalada com mais enxertos de fragmentos de textos aleatórios, desconexos, sem sentido. Com o tempo essas “conversas” ganharam um novo formato. Falávamos por sinais, figurinhas, memes e gifs e diante da mesma pergunta: “Matheus, você está bem? passei a colher sinais de ‘jóinha’ quando estava bem ou ‘carinha triste’ quando algo difícil lhe acontecia. Ficava sabendo por alto pela mãe, à posteriori, o que havia ocorrido quando retornavam à sessão.        

Havia os jogos de carrinhos de corridas virtuais! Matheus convocava meu olhar atento mediante estratégias que criava para adquirir mais moedas até poder evoluir para carros mais potentes, orgulhava-se quando ganhava e reproduzia para si próprio em viva voz: “Muito bem, Matheus”.

Certa vez a bateria de seu celular deixa-lhe às cegas e Matheus literalmente se desfaz. Deixa-se cair amorfo no chão, em frangalhos, num choro intenso, desesperado. “A bateria de seu celular acabou. O jogo parou. Vamos continuar com o meu aparelho!” Instalo rapidamente o mesmo jogo, lhe ofereço a possibilidade de seguir adiante e Matheus já não está mais no abismo do fim do mundo. Os carrinhos virtuais, quando falhos e trôpegos, implodiam por conta própria, mas tinham o poder de retornar ao seu estado de potência original, a corrida recomeçava do zero. Ele entristecia-se diante do fim, às vezes reagia colérico, imensamente frustrado. Ficava feliz ao verificar a possibilidade do recomeço. Passaram a ser mais constantes os pedidos pelo uso do meu carregador e do meu cartão de crédito a fim de que pudesse adquirir novas moedas. Obviamente lhe deixava à disposição somente o carregador e a tomada.  

Matheus deixa-se cair num abismo de angústia temporal mediante a ausência de algum significado que pudesse dar contorno a essa experiência que o invadia desde o Real. Trata-se da presença de um corpo solto, um corpo desprovido de falicidade (- phi), aonde aquilo que fora foracluído (Verwerfung) do simbólico retorna no Real.

No seminário sobre as psicoses, Lacan escancara o que está em jogo nesta operação de recusa do símbolo, este enquanto operador da falta, ou seja, o falo. “O que cai sob o peso do recalque retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. O recalcado está sempre aí, e ele se exprime de maneira perfeitamente articulada nos sintomas e numa multidão de outros fenômenos. Em compensação, o que cai no golpe da Verwerfung tem uma sorte completamente diferente.” (LACAN, 1955/56 – p.21)

“Lacan já havia pontuado que o significante funciona, na psicose, como um encontro Real. Ele é tíquico (contingente) e não encadeado (determinado pela Lei significante). Quanto aos registros podemos dizer que, na psicose, o imaginário claudica (solta-se, esfalece-se) e o significante funciona como Real: Na psicose, é o significante que está em causa, e como significante não é nunca solitário, como ele forma sempre alguma coisa de coerente – é a significância mesma do significante – a falta de um significante leva necessariamente o sujeito a reconsiderar o conjunto de significante´. (LACAN, 1956/2002 p.231). Simbólico e Real emergem de modo tíquico (tantas vezes angustiante). Não se poderia tratar dessas emergências como algo próprio ao campo do determinado (serial). O corpo é urgência na psicose (em especial, nos estados de autismo e esquizofrenia).” (GIANESI, “Sintoma e Corpo”)

Aquilo que poderia assegurar-lhe a presença de um corpo, a dimensão imaginária, encontra-se solta e claudicante, ou seja, absolutamente indistinta dos outros registros, simbólico e real, provando tratar-se aqui da formalidade de um nó de trevo onde RSI aparecem contíguos e indistintos.

“Ter relação com o próprio corpo como estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressada pelo fato de usarmos o verbo Ter. Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese alguma. … a ideia de si como um corpo tem peso. É precisamente o que chamamos de ego”. (LACAN, 1976, p. 146)

Os efeitos do retorno no Real daquilo que não tem respaldo numa unidade de referência simbólica, nem tampouco imaginária, são revelados nas respostas disruptivas, diante da ausência de domínio corporal e dos sons indecifráveis emitidos por esta criança. No início não havia nenhum encadeamento significante que fosse capaz de interpretar sua própria fala.       

Todos os seus orifícios corporais deixavam-se colonizar por mandamentos e imposições advindos do campo do Outro. Cú, cocô, xixi, boca, olhar, voz, … Este sujeito se deixou tratar como um ‘bichinho’. Era olhado, controlado, (mal) dito, (mal) falado, ensurdecido, calado, sequestrado e dominado por gozos marcados por traços de perversidade. Matheus deixava-se subjugar desenfreadamente pelos imperativos categóricos advindos do Outro: “Quero meu menino obediente, correto e bem-comportado”. A construção de um eu imaginário parece-me aqui, um ato político de resistência!   

A entrada forçada deste sujeito na Linguagem a partir da convocação da pulsão invocante só pôde se dar quando houve alguma pausa no ruído invasivo advindo do campo do Outro e algo do silêncio inerente ao próprio som se fez presente. Deu-se a construção de um tracejamento de corpo, de um corpo-rasura, um corpo-garatuja, um corpo possível.  

A aposta num sujeito de fala e de linguagem por traz desse indivíduo completamente alienado ao campo do Outro, a abertura dos orifícios corporais referentes às pulsões oral, anal, invocante e escópica, a construção de um repertório socialmente compartilhado e a possibilidade de inserção nos laços sociais, a feitura de um eu imaginário e a particular extração do objeto voz de seu viés psicopatológico, incluindo-a na própria dinâmica do tornar-se sujeito, foram algumas possibilidades clínicas na direção deste tratamento.

 

[1] Exercício de construção e formalização de um caso clínico apresentado na Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, em setembro de 2021.

 

Referências Bibliográficas

Lacan, J. (1955/56). Introdução à questão das psicoses. In: O seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 21.

_____. (1976). A escrita do ego. In: O seminário. Livro. 23. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 146.

Soler, C. (2015). Lacan, leitor de Joyce.  São Paulo: Aller Editora, 2018. p. 109.

Gianesi, A.P. (……) Sintoma e Corpo.

Wisnik, J.M. (1989). O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

 

Siona Creimer Porro

Psicanalista com formação em Psicologia Clínica pela PUC-SP e Psicologia Hospitalar pelo Hospital São Luiz do Morumbi. Atualmente atende em consultório particular, participa das Formações Clínicas do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo e é membro do Inconsciente Real.

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